Entrevista com José Meirinhos - “Em tempos difíceis, é papel da Filosofia também ajudar a evitar o desastre”
Por Nádia Junqueira Ribeiro, com contribuição do prof. Dr. Alfredo Storck (UFRGS)*
Segundo o filósofo, não há uma receita mágica para o pensamento ser eficaz. Ele defende, contudo, a argumentação clara, a intervenção pública, a defesa das instituições e de valores partilhados como as vias com que filósofos de todos os tempos contribuíram para o seu próprio tempo. “Cabe-nos fazer o mesmo”, disse o professor. Para ele, quem ataca a Filosofia e as Humanidades julga, equivocadamente, que este campo pode ser separados dos demais das ciências. “Quem começa atacando uma parte do saber, acabará tendo medo e tentando fazer o mesmo com todos os outros campos. Os que agora atacam a Filosofia estão bem a tempo de compreender o erro que estão cometendo”, comenta.
Um dos grandes nomes da Filosofia Medieval hoje no mundo, Meirinhos também opinou sobre o estado das artes dessa área hoje. Segundo ele, a disciplina descobriu uma diversidade cultural que permitiu uma renovação, que tem contribuído para alargar o cânone filosófico. Segundo o professor, há a inclusão, por exemplo, de textos filosóficos ou especulativos escritos por mulheres e por leigos.
1- Qual o papel da Filosofia na Europa e no mundo atual? Como reagir a esse contexto de ataques?
A universidade e a escola no seu conjunto são instituições com responsabilidades acrescidas no mundo atual, pois a sua atividade visa o benefício de todas as camadas sociais. A tarefa da Filosofia, nas suas múltiplas vertentes e correntes, é sempre mostrar que o pensamento vale a pena. O pensamento fundamentado é a melhor ferramenta de que a humanidade ainda dispõe para construir sociedades prósperas e tranquilas. Não há nenhum exemplo histórico de sociedades justas, bem-sucedidas, com bem-estar do maior número que tenham assentado na divisão, na exclusão, na violência. Todas as que o tentaram desapareceram, para alívio da humanidade. Em tempos difíceis, é papel da Filosofia também ajudar a evitar o desastre. Não há uma receita mágica para o pensamento ser eficaz. Mas, a perseverança, a argumentação clara, a intervenção pública, a defesa das instituições e de valores partilhados, foram as vias com que filósofos de todos os tempos contribuírem para o seu próprio tempo, construindo o futuro. Cabe-nos fazer o mesmo.
2- A Filosofia vem recebendo ataques no mundo, em geral, e no Brasil em particular. Por que esses ataques neste momento? Por que à Filosofia?
A Filosofia, enquanto aspiração ao saber fundamentado que realiza o homem, tem a responsabilidade de lutar por ensino de qualidade, universal, inclusivo. Posições políticas mais divisivas e que apostam na conflitualidade social como modo de atuação, só podem ter receio e medo Filosofia e das Humanidades em geral. Depois acabarão tendo receio de todos os outros saberes que ensinem a pensar e que olhem de modo construtivo para tudo o que nos rodeia. De Sócrates a Miguel de Unamuno foram muito os que se levantaram contra todas as formas de opressão e de pensamento único, colocando em risco a própria vida. Mas, eles é que deram o exemplo de humanidade e de sabedoria. É deles que nos recordamos em tempos difíceis.
4- Qual o significado da criação da nova Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval? Que importância tem essa criação no contexto em que vivemos?
As sociedades científicas desempenham hoje um lugar insubstituível enquanto instituições agregadoras e dinamizadoras de estudantes e de especialistas com interesses científicos ou profissionais comuns. Nos últimos 40 anos, a medievística filosófica brasileira tornou-se plenamente internacionalizada, dando contributos de primeiro plano para o campo de estudos. A criação da Sociedade Brasileira para o Estudo da Filosofia Medieval (http://sbefm.com/), que entre 7 e 10 de outubro teve o seu primeiro congresso internacional na UFRGS em Porto Alegre, prossegue outras iniciativas anteriores e beneficia do impulso dado por diversos GTs da ANPOF e por outros eventos recentes. Por outro lado, a SBEFM permite também aspirar a um outro grau de envolvimento da comunidade científica, de modo a reivindicar o seu lugar próprio no plano internacional, na universidade e nas instituições acadêmicas brasileiras. O trabalho individual isolado é hoje insuficiente, dada a necessidade de discussão e difusão das pesquisas. Já as sociedades científicas estimulam a interligação e facilitam a participação em atividades da comunidade científica alargada, nacional e internacional. Por isso, apesar da dificuldade e do enorme esforço que representa organizar um grande Congresso como este da UFRGS, ele é um serviço inestimável à comunidade filosófica.
Em todas as situações de refluxo de investimento ou de reconhecimento público, as sociedades científicas devem ser também uma voz ativa representando a totalidade dos seus membros junto das autoridades acadêmicas e públicas. Sem reconhecimento público é muito mais difícil que a sociedade como um todo beneficie e saiba valorizar todos os avanços conseguidos pela pesquisa científica, neste caso com o estudo de uma época que viveu longamente as vantagens filosóficas, sociais, culturais e econômicas da circulação do saber entre diferentes culturas, línguas e religiões. Por estas razões, a criação da SBEFM é sem dúvida uma excelente notícia para as sociedades congêneres de outros países. E os colegas brasileiros que a criaram ou dela são membros estão verdadeiramente de parabéns.
5- Como vê a importância e atuação das Sociedades Científicas de Filosofia na atualidade?
As situações são seguramente muito diversas de país para país. Para além da importância das sociedades científicas em geral para o sucesso das ciências nos últimos dois séculos e meio, gostaria de responder citando 3 exemplos da área da Filosofia que conheço bem.
1º reformas de ensino2º recuperação de ensino da Filosofia: há cerca de seis anos em Espanha foi suprimido o ensino obrigatório da Filosofia nos liceus. A comunidade filosófica mobilizou-se e respondeu criando a Red Española de Filosofía que liderou um processo de diálogo com os agentes políticos que durou cerca de quatro anos e que, no final, conseguiu a reintrodução da filosofia no Ensino Secundário. Sem a persistência da REF, o poder político teria perdido a oportunidade de compreender o contributo positivo que a Filosofia dá para a formação da capacidade de pensar e da cidadania.
3º cooperação internacional: por iniciativa da ANPOF e de sociedades filosóficas ibero-americanas, a 20 de abril de 2017 foi publicada a “Declaração de Salvador a favor da Filosofia”. Esse documento foi crucial para o sucesso da luta da REF em Espanha. E no diálogo aberto e cooperante com as instituições públicas poderá ter o mesmo sucesso em outros países do nosso mundo euro-latino-americano. Nesse plano a cooperação internacional é indispensável. Ainda na semana passada na IIª Bienal de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia, pude assistir ao testemunho de solidariedade e apoio à comunidade filosófica brasileira transmitido pelo Presidente da Société Française de Philosophie (Prof. Denis Kambouchner, da Sorbonne, Paris) e por mim próprio, em nome da Sociedade Portuguesa de Filosofia. As sociedades internacionais também têm a obrigação de sensibilizar as autoridades para a oportunidade que está a ser perdida ao querer dispensar-se a Filosofia e a universidade de dar o seu melhor contributo para o saber, a ciência e a sociedade no seu todo.
Sou, por isso, um otimista quanto ao contributo da Filosofia e das sociedades científicas para a consolidação do ensino e da pesquisa, mobilizando a própria comunidade acadêmica e não deixando de ter um diálogo persistente e construtivo com as entidades que tutelam a ciência e o ensino.