A Filosofia enquanto estudos e práticas
Silvio Ricardo Gomes Carneiro
Prof. de Filosofia da UFABC
Coordenador do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar
É com apelo de urgência que remeto à comunidade da ANPOF estas palavras. Pois a Filosofia ganha novas cores com o último texto aprovado da reforma do Ensino Médio, a Medida Provisória 743/2016, atualmente encaminhada para votação ao Senado no Projeto de Lei de Conversão 34/2016 (PLV 34/2016).
No novo texto, o art. 3º recebe o §2º que afirma: “A Base Nacional Comum Curricular referente ao ensino médio incluirá obrigatoriamente estudos e práticas de educação física, arte, sociologia e filosofia”.
Com isso, pretende-se recuperar o componente da Filosofia (e das demais áreas citadas) na reforma do Ensino Médio, mas sob a marca da “obrigatoriedade” de seus “estudos e práticas”. Uma nova coloração, pois reconhece a importância da filosofia para a formação dos estudantes secundaristas, não mais enquanto “disciplina obrigatória”, e sim enquanto “estudos e práticas”.
Tal estatuto só pode ser compreendido à luz da arquitetura curricular que se traça no PLV 34/2016.A lei. Ora, a lei...
Desde então, muita água rolou por debaixo das “pontes para o futuro”. A pátria educadora seria revista pela ordem e pelo progresso. Após o impeachment, a nova secretaria executiva decretou rapidamente um comitê gestor da BNCC e da Reforma do Ensino Médio (Portaria do MEC 790/2016). Por decreto e sem nenhum diálogo, retira todo o texto do Ensino Médio levado à consulta pública sob o pretexto de uma revisão de seu conteúdo sob a necessidade de uma reforma. Movimento a que poucos de nós estivemos atentos; movimento anterior que, por si só, tornaria questionável o caráter de urgência e de emergência que, alguns meses mais tarde, se apresenta na MP 743/2016, lançada alguns meses depois; movimento que faz questionar se a “urgência” de tal medida já não estava previamente planejada por trás do palco, nos primeiros dias de reorganização do MEC.
Retirando o debate jurídico sobre a legitimidade da MP por uma crise descrita unilateralmente, voltemos ao que nos interessa aqui: a inversão que confere força de lei a uma peça que deveria ser regulamentada por toda uma rede de princípios que faz da educação um direito social. No novo texto que altera a LDB, o documento da BNCC ganha um protagonismo sem precedentes. Regulamenta não apenas os componentes curriculares, como também as licenciaturas, conforme notamos no artigo supracitado, bem como no Art. 7º, § 8º da atual PLV 34/2016. Sem falar no protagonismo que organiza processos nacionais de avaliação, conforme previsto no Art. 35, §5º, que estipula a BNCC como referência para tais processos nacionais de avaliação.
Tais movimentos não destituem, claro, a LDB de sua função diretiva e de princípios. Mas, no frigir dos ovos, basta acompanhar as políticas de educação para saber o que tais alterações na LDB significam. Não raro, os representantes da Secretaria Executiva do MEC justificavam que a Filosofia estaria presente na matriz curricular das escolas junto ao que se referenda na BNCC.
Uma vez compreendida a importância da BNCC na recomposição da Filosofia e da Sociologia e, sobretudo, compreendido o modo como estas disciplinas foram pensadas a partir de um comitê gestor fundado pela portaria do MEC em 28 de julho de 2016, podemos pensar um pouco mais sobre o que significa a presença da Filosofia enquanto “estudos e práticas” previsto na PLV 34/2016. Tudo depende do que será decidido pelo petit comité do Comitê Gestor criado pelo MEC, cuja voz não leva em conta o amplo debate formado previamente e que, no caso da Filosofia, gerou um currículo aberto para os 3 anos do Ensino Médio no documento levado à consulta, antes da intervenção do atual MEC.
Articulemos aqui um segundo passo, que visa o encontro da matriz filosófica com um ensino médio dividido por áreas de conhecimento.
Estudos e práticas na arquitetura do Ensino Médio reformado.
Dentre as idas e vindas da MP para a votação, é preciso acrescentar dois elementos para tal arquitetura da reforma. Primeiramente, a antiga BNCC previa um curso de Filosofia para 3 anos. Com a reforma este projeto será reduzido pela metade. O esforço para o retorno da disciplina filosófica aparece em grande parte das 586 emendas parlamentares – número que, por si só torna questionável a reforma do Ensino Médio por uma medida provisória. O resultado final foi inserir o parágrafo que reconhece a obrigatoriedade de seus “estudos e práticas”.
Cabe questionar: como será feita a redução pela metade da matriz filosófica? Como o petit comité de gestores do MEC está articulando isso? Há um silêncio aterrador por parte do MEC. O movimento de ruptura com o processo anterior é notável.
O impacto de tal arbitrariedade é imenso, gerando bizarrices curriculares nas redes pública e privada de ensino que, na tentativa de antecipar o próximo passo, ora reduziu a carga horária das disciplinas, ora levou à criatividade vazia e econômica no corte de inúmeros professores de filosofia e sociologia, tornados aparentemente dispensáveis para a nova matriz curricular que se anuncia. Não são poucos os relatos de professores do ensino médio a respeito de tal impacto. Disciplinas que se mesclam, inseguranças nas contratações, arbitrariedades curriculares por parte dos coordenadores pedagógicos – um movimento previsível quando mudanças de tal envergadura chegam aos trotes do decreto.
A Filosofia nas ciências humanas e sociais aplicadas
Um segundo elemento vem da nova configuração das áreas de conhecimento. Sem muitas justificativas no seu relatório, o senador Pedro Chaves altera a nomenclatura das ênfases. Outrora repartidas entre linguagens, matemática, ciências naturais, ciências humanas e formação técnica profissional, agora tais áreas recuperam aparentemente uma articulação já conhecida nos documentos dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Respectivamente, as áreas de conhecimento passam a se chamar: linguagens e suas tecnologias, matemáticas e suas tecnologias, ciências naturais e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas e, sintomaticamente sem alterações, formação técnica e profissional.
É preciso questionar o destino das ciências humanas nesse percurso. Por que não operar, como nas demais áreas um vínculo com as tecnologias – na hipótese de que tal relação teria como base os PCN? Compreender a filosofia no corpo das “ciências humanas e sociais aplicadas” passa a configurá-la de modo bem diverso de suas inúmeras possibilidades. Já é questionável afastar a Filosofia da linguagem, da matemática, das ciências naturais e do mundo do trabalho. Ao compreendê-la no escaninho das “ciências humanas e sociais aplicadas”, qual valor de conhecimento passa a receber seus “estudos e práticas”?
Na arquitetura reformada do ensino médio, o significado da obrigatoriedade dos “estudos e práticas” da Filosofia (bem como dos demais conteúdos curriculares presentes nesta artimanha legal) é seu esvaziamento na formação estudantil. O decreto simplesmente retira do horizonte os anos de debate que consideram a Filosofia disciplina fundamental para a formação cidadã, algo presente nas manifestações de algumas emendas parlamentares, muitas delas sustentadas pelo Parecer CNE/CEB nº 38/2006 que recomenda a obrigatoriedade da disciplina na matriz escolar, uma vez que se trata do valor “para um processo educacional consistente e de qualidade na formação humanística de jovens que se deseja sejam cidadãos éticos, críticos, sujeitos e protagonistas”.
Além disso, se o objetivo do MEC fosse realmente estabelecer o protagonismo juvenil, bastaria fornecer as ferramentas para isso. A Filosofia não é exclusiva, mas é uma delas. O desprezo da matéria enquanto “estudos e práticas” corresponde ao modo como muitos pretendem resolver a crise da educação: um pretenso protagonismo pelo consumo de um cardápio curricular.
Eis, pois, o significado da obrigatoriedade dos “estudos e práticas” da Filosofia: uma forma vazia de discurso contrária a toda força da dúvida, da real flexibilidade que opera a educação de um sujeito em suas questões para além das metas inalcançáveis de um delírio burocrático.
A despeito disso, sabemos que quase uma década de obrigatoriedade da Filosofia (e demais disciplinas) na matriz escolar fez a diferença. Pensar a partir daí viabiliza uma revolução na educação, talvez o maior temor de quem está silenciando as vozes da educação por decreto.